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Entrevista com a médica infectologista Cydia Alves Pereira de Souza

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A entrevista desse mês é com a Dra. Cydia Alves Pereira de Souza, médica infectologista especializada principalmente no acompanhamento de pacientes portadores de HIV/Aids e Hepatites Virais, além de outras doenças infecciosas, com consultório aqui no Flamengo Park Towers. Em um ótimo bate-papo, conversamos um pouco sobre sua experiência no tratamento de Aids e Hepatites e sobre doenças infectocontagiosas mais comuns no Rio de Janeiro, além das políticas públicas de saúde e de prevenção e tratamento destas doenças.

Doutora, conte um pouco sobre a sua formação e sua carreira como médica infectologista.

Me formei em 1980, quando começou a epidemia de Aids e fiquei muito impressionada, mobilizada e interessada em tentar ajudar esses pacientes. A minha formatura coincidiu com os primeiros casos de Aids e muitos poucos médicos queriam tratar esses pacientes na época. Então, comecei a estudar muito a doença. Em 1990, resolvi me especializar no tratamento e acompanhamento de pacientes portadores de HIV/Aids e, logo depois fiz Mestrado em doenças infectocontagiosas e parasitárias na UFRJ e, desde então, me dedico a essa especialidade. Dou aula na Universidade Estácio de Sá e trabalho na Secretaria Municipal de Saúde no Centro Municipal de Saúde de Copacabana, onde tenho um programa de atendimento para pacientes com Aids e Hepatites Virais.

Fale um pouco da atuação de um médico infectologista.

O Infectologista é o médico especialista no diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos pacientes portadores de doenças infecciosas e parasitárias, sejam elas causadas por vírus, bactérias, fungos, protozoários ou outros micro-organismos. O Rio de Janeiro, por ser uma capital urbana, não tem incidência de muitas das doenças tropicais prevalentes no Norte e Nordeste do Brasil. Então, basicamente, trabalhamos com infecções bacterianas, infecções hospitalares, HIV, hepatites e arboviroses, que incluem as doenças transmitidas pelo Aedes aegypti.

As viroses respiratórias no inverno e gastrintestinais no verão são muito comuns aqui no Rio de Janeiro. Como diferenciar cada caso e quais as melhores formas de prevenção? E porque o diagnóstico de “virose” é muito comum?

Todas as viroses tem nome. Basta fazer a pesquisa dos antígenos ou amplificação do genoma dos vírus. Não existe o “você está com virose”. O paciente pode estar com gripe, com dengue, rotavírus, etc. O problema é que existem várias gastroenterites virais, causadas por diversos tipos de enterovírus. E, muitas vezes, não é possível fazer as pesquisas desses vírus. Primeiro, porque eles são eliminados rapidamente e, segundo, porque o método de pesquisa é por amplificação do RNA do vírus e o paciente fica bom antes do resultado. O rotavírus é um caso mais grave que causa uma diarreia que debilita mais. E ainda existem as diarreias causadas por bactérias. Nessas, é possível fazer a cultura e descobrir o que está acontecendo. Mas não existe “virose”, se a gente quiser e puder, por causa do alto custo dos exames, fazemos o diagnóstico de todas elas.

Como você avalia a política pública de combate ao HIV no Brasil?

Já foi um sucesso, não é mais. Primeiro, porque não temos a aquisição dos novos medicamentos disponíveis no mundo, que são muito menos tóxicos e mais fáceis de tomar. Na verdade, o nosso Programa parou em 2006. Os remédios que usamos hoje não são mais usados. O nosso guia de tratamento está, neste momento, começando a melhorar, mas os medicamentos utilizados estão todos ultrapassados. A tendência é melhorar um pouco com um remédio novo que foi adquirido: o Dolutegravir. Também o programa de prevenção do governo é muito precário e negligenciado. As pessoas continuam se relacionando sexualmente com pessoas desconhecidas sem preservativos, principalmente os jovens. Quatro em cada cinco pacientes novos com HIV que eu recebo têm menos de 25 anos. E quando eles ficam infectados se desesperam porque não têm estrutura emocional para lidar com uma doença que ainda não tem cura.

Tão importante quanto a prevenção é o serviço de acolhimento às pessoas que tiverem um resultado positivo. O tratamento avançou e a sobrevida é muito maior do que registrado nas décadas passadas. Mas, para muitas pessoas, a doença ainda é tratada como tabu e um certo preconceito. Como você avalia o trabalho de acolhimento realizado aqui no Brasil?

O grande problema, para mim, é que estamos lidando com uma doença sexualmente transmissível e sexo é tabu no Brasil ainda. Não se discute sexo nas escolas nem em casa. Ainda se acha, hoje em dia, que a AIDS é uma doença de excluídos, de homossexuais, garotas de programa e de drogados. Existem, por exemplo, crianças que nascem com HIV, mulheres que são contaminadas pelos maridos. Não é uma doença ligada à quantidade de parceiros e sim a você manter relações sexuais sem preservativos. Felizmente a infecção pelo HIV é hoje uma doença totalmente controlável por medicamentos. Porém, existem pessoas que não conseguem conviver com a doença e acabam morrendo por medo do diagnóstico e da discriminação. Existe, ainda, muito estigma e discriminação de nossa sociedade e até mesmo de colegas médicos de outras especialidades. Nossa sociedade ainda é muito conservadora. Os pais não têm discutido o assunto com os filhos. Talvez não façam o que faziam no início da epidemia nos anos 80/90, onde muitos eram expulsos de casa, mas eles também não se envolvem com o problema. Ainda se discrimina muito os homossexuais no país. O Brasil é o segundo país em número de mortes de homossexuais e transexuais por homicídio no mundo, atrás apenas do México.

Nos últimos anos presenciamos o surto de zika e chikungunya, assim como o de dengue que já era uma velha conhecida. O SUS e o sistema de saúde privado estão com dificuldades para o diagnóstico. O que causa essa dificuldade?

Precisamos de exame, isso é o mais importante. Não temos exames suficientes para fazer o diagnósticos destas duas doenças (zika e chikungunya, principalmente).  A rede pública cobre os exames em casos suspeitos, que estão sendo feitos na sua maioria nas grávidas, por causa da microcefalia. A chikungunya pode evoluir para uma artrite permanente e incapacitante se não for adequadamente tratada e requer mais cuidado, pois as sequelas podem durar bastante tempo. E depois de tantos anos, eu posso afirmar: é impossível erradicar o Aedes. O trabalho que pode e deve ser feito é o de conscientização para evitar a proliferação do Aedes. A zika na grávida pode causar microcefalia no bebê? Sim, mas a dengue mata. É a pior de todas as arboviroses, depois da febre amarela, mencionando as que podem ser transmitidas por este vetor, que é problema maior. Você deve ter notado a quantidade de pessoas que pararam de fumar. Isso se chama educação continuada e começou dentro das escolas. E dentro das escolas, as próprias crianças e adolescentes já não fumam como fumavam antigamente. Existe uma conscientização dos jovens de que o cigarro faz mal para a saúde e os pais estão parando de fumar por pressão dos filhos. Se existisse esse trabalho de prevenção aos mosquitos nas escolas e saneamento básico nas cidades, o que não existe, principalmente nas comunidades carentes, teríamos menos casos fatais. A grande incidência dessas doenças está nas populações de baixa renda. Há uma falha muito grande nas campanhas. O salário pago aos agentes de saúde é bem baixo também e a inversão de valores é muito grande. As pessoas que têm importância para a comunidade são muito mal pagas.

A febre amarela está em evidência novamente. Temos casos confirmados em cidades de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e, agora, Rio de Janeiro. Qual o principal motivo para a febre amarela ter retornado? O governo errou na prevenção?

A febre amarela é uma doença causada por um vírus, que é transmitida por mosquitos. A doença ocorre nas regiões de matas e nos ambientes silvestres, por esta razão chamada febre amarela silvestre. Quando a doença ocorre nas cidades é chamada de febre amarela urbana. A febre amarela silvestre é transmitida por mosquitos chamados de Haemagogus e Sabethes. A febre amarela urbana é transmitida pelo Aedes aegypti. O grande problema desta nova epidemia, assumido pelo Ministério da Saúde, foi a não vacinação das pessoas nas áreas rurais ou de risco, que são as pessoas que estão morrendo. Nessas áreas, as pessoas precisam ser vacinadas. Agora o Governo está apagando o incêndio. Trabalha em surtos e não na prevenção.

Conte um pouco sobre seu trabalho no programa municipal de atendimento para pacientes com AIDS e Hepatite.

Eu trato pacientes com Aids há 30 anos e é um trabalho muito interessante e apaixonante. Trabalho com pessoas com resistência a muitos medicamentos e com todo tipo de paciente (travestis, transexuais, etc.). Além disso, trato pacientes com Hepatite C, doença que afeta 200 milhões de pessoas no mundo, contra 36 milhões de pessoas com HIV. É uma “epidemia escondida” e muitas pessoas não sabem que estão infectadas. Hoje, tratamos a Hepatite C com 2 medicamentos durante 3 meses com taxa de cura em 99% dos casos. É um trabalho muito incentivador que eu comecei em 2011 e que funciona em um ambulatório dentro de uma unidade básica de saúde. Com relação ao HIV, tirando o que estávamos discutindo sobre a discriminação e preconceito, é uma doença também gratificante de ser tratada, pois todos os pacientes hoje têm uma vida normal vivendo com HIV. Existem diversos estudos de corte que mostram que a sobrevida das pessoas com e sem HIV é a mesma, desde que a pessoa se trate e que escolha um estilo de vida saudável. Tem sido muito gratificante ver que meus  meus pacientes estão chegando na terceira idade. Agora eu estou cuidando da velhice deles e não imaginava na década de 80 que um dia eu me transformaria em uma geriatra.

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